Desconhecimento linguístico, manipulação discursiva ou os dois?

A discussão sobre educação, em torno do livro Por Uma Vida Melhor, gerou vários comentários sobre o ensino da língua e sobre o próprio livro. No entanto, cabe ainda um olhar atencioso sobre o discurso indutivo da apresentadora do programa Entre Aspas. (excerto com 7 min.) 
Abaixo, na íntegra (24 min.).


A falta de conhecimento da moderadora provoca risos nos convidados e quase provocou uma confusão logo no início da entrevista. Esse desconhecimento acaba trazendo mais problemas sociais do que soluções, pois possibilita a veiculação de informações errôneas e distorcidas através da televisão.

O caso em torno do livro didático da Heloísa Ramos não gerou controvérsia, mas uma oportunidade para se reforçar a intolerância de alguns articuladores quanto às diversidades linguísticas.

A apresentadora inicia o programa transmitindo algumas poucas informações, escolhidas a dedo, como quem aborda o ponto principal da discussão sobre a área da Educação e, em seguida, julga os dados apresentados de maneira claramente tendenciosa, como se ela fosse a detentora da verdade. Encerra a introdução como se o que acabou de falar fosse um retrato fiel da atual realidade da Educação. Ou seja, elaborou um discurso para difamar a situação dos alunos e, ao mesmo tempo, defender e reforçar suas limitações sobre linguística e práticas de ensino.

Ela ainda se apoia na visão ultrapassada de que se deve preparar os estudantes para um fim específico (mercado de trabalho, ENEM ou vestibular). Os estudantes precisam de muito mais, precisam aprender a ler, entender, discernir, julgar e escolher em qualquer âmbito ou momento da vida. Algo muito além do ensino de gramática.
"A função da escola é ensinar às crianças como o mundo é." - Hannah Arendt

Considerando-se a ideia extremista do certo x errado, fortemente defendida pela moderadora, poderemos perceber que ela comete vários erros, que o feitiço se vira contra a feiticeira.

Um erro é dizer que o livro gerou polêmica. Na realidade, o livro traz informações sobre como ensinar as variedades linguísticas existentes no Brasil. Quem gerou polêmica foram as pessoas leigas em linguística, que não sabem o que é variedade linguística, não lecionam, mas vivem da venda de manchetes baratas e não têm coragem de convidar um especialista para o debate, isto é, um linguista. Precisamos de um jornalismo que traga esclarecimento ao invés de criar confusão.

Outro erro é alegar que o livro define a maneira certa ou errada da língua falada. Uma total falta de conhecimento sobre a publicação. O livro propõe como explicar a variedade linguística para alunos do EJA (Ensino para Jovens e Adultos), sem descartar o ensino da norma padrão, que é uma dessas variedades.

A apresentadora tenta por em dúvida a fala da autora do livro ao insinuar algo como "o que a autora chama de preconceito linguístico". A autora esclarece a existência de um tipo de preconceito e que ele poderá ser manifestado contra os alunos. O preconceito linguístico existe faz tempo, é discriminar alguém por falar desse ou daquele modo sem se considerar o contexto do discurso, um completo desrespeito pelas diferenças.

Em seguida, ela destaca o óbvio: "ninguém fala o tempo todo segundo a regra culta". Isso evidencia que todo mundo erra, inclusive a própria anfitriã, que se revela leiga e, sistematicamente, resistente ao conceito de variedades linguísticas. Esse destaque indica que a ideia de erro deve ser discutida, pois envolve a fala de todos nós.

A falta de conhecimento da apresentadora sugere algo que beira o absurdo: "se a escola deve aceitar outras variantes da língua indiferente à regra gramatical".
Nessa fala, o termo é variedade e não variante linguística. Ela errou de novo.
Além do termo gramatical estar mal empregado, não existe variedade de uma língua que fuja da gramática.

Questionar se a escola deve aceitar outras variedades é pregar a intolerância justamente no ambiente em que se deve discutir as diferenças. Não é função da escola julgar ou rejeitar os diversos falares, cabe a ela reconhecê-los e explicá-los para que, entre outras razões, não se pratique e nem sofra preconceito linguístico.
Nenhuma língua aceita a falta de regras, pois sua falta é a ausência de um dos elementos básicos. Uma língua se compõe, grosso modo, da gramática (conjunto de regras), do léxico (conjunto de palavras), da interação (quem, com quem, onde, quando) e de gêneros (formas de se falar e escrever: conversa, audição; jornal, revista etc.). Ensinar gramática é ensinar só uma parte da língua.

Mais adiante, ela se inclui no grupo dos pecadores "...driblamos as normas, comemos os esses e desprezamos a conjugação dos verbos...". Mais uma confirmação de que ela também erra.
Ela também solta um "gramática agonizante". O que é isso? A língua é viva pelo fato de se transformar constantemente.

Afirma do nada que a "língua escrita para ser compreendida não aceita falta de regras".
Sabemos que a compreensão de um texto não é inflexível assim, pois para aprendermos a ler e escrever sempre cometemos alguns deslizes diante da referência adotada e caberá ao leitor ou professor considerá-los. E, óbvio, deixa de ser língua se faltar regra.

Questiona se é possível escrever direito sem falar em bom português.
Claro que é possível, pois bom é juízo de valor! E valores sempre podem ser questionados. Além disso, são duas linguagens distintas com empregos distintos.
Precisa ficar claro que, segundo o livro, o aluno vai aprender o que ela chama de bom português, a norma padrão, e vai aprender também sobre variedade linguística. O estudante será capaz de identificar a sua própria variedade e se reconhecerá como sujeito da sua comunidade. O fato de se falar uma variedade da língua não impede o estudante de aprender a falar e/ou escrever outra. De fato, quanto mais variedades um falante souber, mais competente ele se torna. Evanildo Bechara, autor da Moderna Gramática Portuguesa e membro da Academia Brasileira de Letras, define isso como ser poliglota na própria língua.

A adequação da fala ocorre cotidianamente: um pai fala com o filho, com a esposa e com o pediatra, por exemplo, se utilizando de três maneiras diferentes. É fácil de entender: terno e gravata numa reunião de negócios, pijama para dormir e sunga na praia. Portanto, não é uma questão de se falar ou escrever de maneira certa ou errada, como a apresentadora insiste em reforçar ao longo de todo programa, mas de uma questão de adequação. Ou seja, na escola deve-se aprender a falar e, principalmente, escrever baseado na norma padrão e, fora dela, devemos nos adequar a cada situação.

Quanto ao poeta Fernando Pessoa, patriota é quem manifesta amor pela pátria! Vários brasileiros, analfabetos ou não, são patriotas. Seria mais adequado dizer que quem manifesta amor à língua são os literatos e os linguistas. E por que não os falantes? No poema citado, e em tantos outros, se utiliza a linguagem poética e ela permite várias interpretações. O poema não explica nada, ele pede o envolvimento do leitor para que este descubra a sua poesia.
Será que o poeta declara seu ódio à "ortografia errada" ou chega a fingir que é dor?
Ilustríssima mediadora, não existe ortografia errada, pois orto significa certo. Existe erro de grafia ou grafia errada. Creio que Pessoa já sabia disso e vejo que você errou mais uma vez.

Se uma pessoa gosta da ideia de julgar de forma extremista e inflexível, baseando-se no certo x errado, deve admitir ser julgada da mesma maneira. Assim sendo, qual é a autorização que essa apresentadora se dá para cometer erros e, mesmo assim, se sentir juíza da fala alheia. Popularmente se diz: O roto falando do rasgado.

Aproveitando o momento de citações, invoco Luís de Camões (XVI), que se utilizou da mesóclise quando escreveu o Canto I, de Os Lusíadas, uma colocação pronominal impraticável hoje, na fala principalmente: "Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação". Ele empregou termos considerados arcaísmos hoje em dia: "Nas cousas de que tem notícia e fama". Além de alembrar, ajuntar, alumia e amostrando. A língua se transforma de verdade.
Invoco também José Saramago (XX), que escreveu Ensaio sobre a Cegueira com uma pontuação extremamente diferenciada, com poucos pontos e muitas vírgulas.
Insisto: a língua se transforma de verdade.

Outro questionamento muito estranho, quiçá um devaneio, é sobre a invenção de palavras. Sabemos que não existe uma nascente mágica fornecedora de palavras para cada nova necessidade. Qual palavra não foi inventada?
Tucanada, por exemplo, é uma invenção (criação/neologismo) recente que ela usa num momento áspero da conversa. Mas não parou para pensar sobre.
Inventar palavras ou novos significados para as já existentes faz parte da história de uma língua.

Julgar é sempre delicado, pois nos coloca no mesmo caldeirão. No entanto, para enquadrarmos uma fala como correta ou incorreta é necessário existir um parâmetro, pois não existe uma verdade absoluta e indiscutível que julgue fala e escrita de cada pessoa.
A moderadora deixa nítida a marca de oralidade a gente. Expressão que, certamente, não é adotada em textos jornalísticos.
Na escola, a referência é a norma padrão e o livro de gramática normativa, na TV ou jornal, a referência é a variedade jornalística e o manual de redação do patrão. Isto é, precisamos nos adequar sempre.

Enfim, são muitos erros proferidos por uma apresentadora preocupada em destacar os erros alheios. Será que os erros dela são "menos errados"?

Creio que essa ideia de certo x errado precisa ser eliminada. O escritor Marcelino Freire foi muito feliz ao citar Sérgio Vaz, poeta e agitador cultural da periferia de São Paulo. Sérgio é comprometido com a dignidade e a autoestima das pessoas que vivem na periferia, se preocupa em esclarecer o que é cidadania entre os que são excluídos.

Daí em diante, a entrevista fala por si e os convidados se divertem com a "anfitriã".

Em tempo, vale destacar que o MEC orienta a abordagem do preconceito linguístico em sala de aula desde 2000, através dos PCNs. E que existem vários grupos de estudo linguístico no Brasil, como o GEL, GELNE, GELOPA. O GEL já tem mais de 40 anos.

Muito pior do que falar ou escrever de maneira diferente da norma padrão é transmitir, pela TV, discursos preconceituosos e excludentes cuidadosamente elaborados, pois a TV não presta um serviço democrático (se é que esse papel cabe a ela), ela não permite o telespectador (ou acusado) se manifestar em sua defesa no mesmo canal, horário e nem durante o mesmo tempo, isso beira a covardia.

As indicações a seguir complementam essa discussão:
O Museu da Língua Portuguesa montou uma exposição que aborda o tema variedade linguística. Existe também um vídeo apresentado pelos organizadores da exposição.
Veja aqui dois especialistas renomados: José Luiz Fiorin e Ataliba Castilho.
Esse outro aborda a comunicação oral.
E essa videoaula fala sobre níveis de linguagem e suas adequações.
Após esta postagem, a Rádio Câmara realizou uma outra entrevista e a Univesp TV também. Ambas merecem estar aqui.

Abraço e sucesso!
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 






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